Tuesday, October 01, 2013

Tradição e hispanidade em Gilberto Freyre

Tradição e hispanidade em Gilberto Freyre[i]
Por Victor Emanuel Vilela Barbuy

Nascido no Recife em 15 de março de 1900, sendo filho do Sr. Dr. Alfredo Freyre e de D. Francisca de Mello Freyre, Gilberto Freyre estudou no Colégio Americano Gilreath (atual Colégio Americano Batista), de que seu pai, Juiz de Direito e futuro Professor Catedrático de Economia Política da Faculdade de Direito do Recife, fora, em 1905, um dos fundadores, ao lado de missionários batistas norte-americanos, e do qual era, ainda, diretor e professor de diversas disciplinas.
            Em 1914, já havendo lido as principais obras de autores como José de Alencar, Machado de Assis, Gonçalves Dias, Castro Alves, Camões, Virgílio, Júlio César, Victor Hugo, Emerson e Milton, assim como alguns dos dramas de Shakespeare e sendo ainda aluno do curso secundário do Colégio Americano Gilreath, Gilberto Freyre, que aprendera latim com o próprio pai, naquela instituição, ali já lecionava o idioma de Ovídio e Horácio, ao mesmo tempo em que se tornava redator-chefe do jornal do colégio, intitulado O Lábaro.
            Três anos mais tarde, e depois de haver lido a Bíblia, assim como as obras de Cervantes, Eça de Queiroz, Alexandre Herculano, Oliveira Martins, Molière, Rui Barbosa, Joaquim Nabuco e Oliveira Lima, dentre outros autores d’aquém e d’além mar, incluindo entre estes últimos pensadores como Nietzsche, Spencer e Comte, o então futuro autor de Casa-grande e senzala se formou Bacharel em Ciências e Letras pelo Colégio Americano Gilreath, sendo o orador da turma, cujo paraninfo foi o historiador Oliveira Lima, de quem logo tornar-se-ia grande amigo. No discurso então proferido, e que seria publicado no Diário de Pernambuco e também em folheto da tipografia daquele colégio, sendo posteriormente transcrito no livro Região e Tradição, cuja primeira edição data de 1941, percebemos um forte sentimento patriótico, nacionalista, tradicionalista e regionalista, sendo tal regionalismo, chamado orgânico por José Lins do Rego,[1] um regionalismo equilibrado e construtivo, plenamente compatível com aquele nacionalismo igualmente ponderado e edificador e, assim como ele, tendente ao universalismo.
Em tal discurso, intitulado Adeus ao colégio, revelando ideias assaz semelhantes àquelas que seriam defendidas, nos anos seguintes, por Oliveira Vianna, Freyre criticou duramente o ideologismo abstrato das elites dirigentes brasileiras, que não é senão a “política silogística” denunciada por Nabuco[2] e o “idealismo utópico” sobre o qual discorreria o autor de Instituições políticas brasileiras e de Populações meridionais do Brasil em obras como O idealismo da Constituição (1927, com segunda edição, revista e bastante aumentada, em 1939). Assim, proclamou o então futuro autor de Ordem e Progresso que “não é com palavras sutis e fórmulas livrescas que se faz uma nação grande e forte”, devendo “servir de dura lição”, às “terras de ideólogos”, o “triste fim de Bizâncio”,[3] e que “verdadeira praga de gafanhotos têm sido para o Brasil essas centenas de bacharéis filosofantes e palreiros, arvorados em dirigentes”,[4] lamentando, contudo, que tal “praga” fosse “estùpidamente” combatida com um discurso de cunho utilitarista.[5] Destarte, sustentou ele que não devemos ser “meros ideológos nem simples utilitários, mas idealistas práticos”, o que, em nosso sentir, equivale a dizer que temos o dever de ser adeptos daquilo a que Oliveira Vianna denominaria “idealismo orgânico”, idealismo este que se forma tão somente de realidade, se apoia tão somente na experiência e se orienta tão somente pela observação do povo e do meio,[6] afirmando, ainda, ser “tempo do Brasil desapegar-se das fórmulas vagas, procurando ver e observar os seus problemas em vez de ater-se ao que está escrito nos livros estrangeiros” e que “o Brasil quer homens”, quer “líderes de cultura e ao mesmo tempo capazes de ação”.[7]
            Ainda no ano de 1917, Gilberto Freyre se tornou protestante batista, o que desagradou à sua mãe, que era católica, enquanto o pai,  a despeito de professor de Latim Eclesiástico, Filosofia da Religião Cristã e Leitura Expressiva da Bíblia no Seminário do Norte, atual Seminário Teológico Batista do Norte do Brasil,[8] localizado lá mesmo no Recife, era, segundo o próprio filho, teísta e espiritualista cristão sem filiação religiosa, ainda que sempre admirador da Igreja Católica Apostólica Romana, sendo, ademais, assíduo leitor, em latim, das obras dos Doutores da Igreja, dentre os quais Santo Agostinho gozava de sua predileção.[9] Provavelmente por influência paterna, leu, por essa época, Gilberto Freyre, dentre outros autores, a exemplo de Darwin, Tolstoi, William James, Bergson, Taine e Renan, Santo Tomás de Aquino, Santo Agostinho, São Francisco de Assis, São Francisco de Sales, São João da Cruz, Santa Teresa de Ávila, Padre Antônio Vieira e Padre Manuel Bernardes.
            No ano seguinte, partiu o futuro autor de Sobrados e mucambos para os Estados Unidos da América, onde se matriculou na Universidade de Baylor, instituição batista localizada em Waco, no Texas, e iniciou sua colaboração no Diário de Pernambuco, com a série de cartas Da outra América. Em 1920, formado Bacharel em Artes pela Universidade de Baylor e já havendo abandonado o protestantismo, seguiu para Nova Iorque, onde ingressou na Universidade de Colúmbia, na qual conquistou, em 1922, o grau de M.A. (Magister Artium ou Magister of Arts) com a tese intitulada Social life in Brazil in the middle of the 19th Century, que, publicada em Baltimore pela prestigiosa Hispanic American Historical Review, mereceu elogios de professores como Oliveira Lima e Henry Louis Mencken. Neste último ano, viajou para a Europa, onde se demorou até 1923, visitando a Inglaterra, a França, a Alemanha, a Bélgica, a Espanha e Portugal, havendo tido contato, na França, com “movimentos surpreendentes pela sua mistura de defesa de tradição, no caso a monárquica, e de renovação”, por meio daquilo a que ele denomina “um novo e revolucionário federalismo”, como a Action Française,[10] já havendo então lido a obra de Charles Maurras, principal vulto deste movimento cívico-político patriótico, nacionalista, tradicionalista e monárquico francês, que muito influiu na obra do jovem Gilberto Freyre, particularmente nos conceitos de Tradição e de Regionalismo.
            Foi, porém, em Portugal que Gilberto Freyre mais se demorou, ali tendo contato com diversos intelectuais, alguns deles ligados ao grupo republicano da chamada Seara Nova, se configurando, no dizer de Freyre, na “‘ala dos namorados’ da democracia livre pensadora de Portugal”, e outros “’Integralistas’, isto é, “monárquicos ‘d’avant garde’”. Havia entre os primeiros, segundo o autor, “indivíduos de notável talento”, a exemplo de António Sérgio e Câmara Reys, mas “só um obsevador desequilibrado pela mais rasgada parcialidade de sentimento negaria à ala oposta, aos antidemocratas, o encarnarem, neste momento, a melhor inteligência e a maior bravura de ação portuguesas”. Assim, prossegue o então jovem colunista recifense, “os Srs. Fidelino de Figueiredo, Conde de Monsaraz, Antônio Sardinha e Afonso Lopes Vieira bastariam, isolados, para dar ao grupo antiliberal sumo prestígio, sob todos os pontos de vista”.[11]
            No entender de Freyre, que voltou para o Brasil fortemente influenciado pelas ideias do Integralismo Lusitano, movimento de cujo principal doutrinador e líder, António Sardinha, se fizera mesmo amigo, ainda que o tendo conhecido apenas por meio de cartas, “o movimento antiliberal português, longe de ser puro esprit de minorité, é um esforço consciente de reintegração nacional”, de “reintegração do país no seu caráter e nas suas tradições, desfiguradas como por uma espessa camada de cem anos de constitucionalismo acaciano e, ultimamente, de delírio demagógico”. Destarte, partindo do pressuposto de que a República estava, em Portugal, fazendo tábula rasa da Tradição, querendo que o povo olvidasse “o antigo regime”, como notara Oliveira Lima, em sua primeira correspondência de Lisboa ao jornal portenho La Prensa, salienta Freyre que contra isto se insurgia “a inteligência crítica das gerações mais novas”, especialmente dos “chamados integralistas”. “Querem o regresso absoluto ao passado?”, indaga nosso autor. “Muito ao contrário, responde voz autorizada do grupo; pedimos à experiência do que foi as normas seguras do que deve ser”.[12]
            Isto posto, cumpre assinalar que o Integralismo Lusitano, cujas ideias eram, no dizer do republicano, apologista da maçonaria e, como tal, insuspeito poeta Fernando Pessoa, “as únicas com sistema e coerência”[13] no Portugal de então, difere do Integralismo Brasileiro mais tarde surgido pelo fato deste último não ser católico-confessional e não reivindicar, no Brasil, a restauração monárquica, reunindo tanto monarquistas quanto republicanos, assim como tanto católicos quanto membros de outras confissões religiosas, no que, aliás, estava plenamente de acordo com a posição do Papa Pio XI, que, na Encíclica Caritate Christi Compulsi, de 1932, pregou a formação de uma frente ampla espiritualista, que deveria unir, no combate sem tréguas ao materialismo, não apenas católicos e cristãos em geral, mas todos aqueles que fizessem da crença em Deus a base de toda a ordem social.[14] A despeito, porém, de tais diferenças, sempre houve profunda admiração dos principais vultos do Integralismo Lusitano pelo Integralismo Brasileiro e vice-versa, havendo, por exemplo, Hipólito Raposo, um dos mais importantes líderes e doutrinadores do Integralismo Lusitano, se referido a Plínio Salgado, principal líder e doutrinador do Integralismo Brasileiro, como “o mais eloqüente intérprete da Brasilidade”,[15] enquanto Gustavo Barroso, segundo maior doutrinador e líder do Integralismo Brasileiro, se referiu a António Sardinha, já falecido quando do surgimento do Integralismo d’aquém mar, como um “grande mestre”.[16]
Quanto a Gilberto Freyre, se, por um lado, esteve este assaz longe de admirar o Integralismo Brasileiro da mesma forma que um dia admirara o Integralismo Lusitano, por outro, sublinhou, no opúsculo Uma cultura ameaçada: a luso-brasileira, o seu caráter antirracista, segundo ele “um dos pontos simpáticos e essencialmente brasileiros daquele movimento”,[17] e, na obra Problemas brasileiros de Antropologia, ao falar do “espírito bandeirante”, ou “bandeirismo”, por ele muito admirado, cita Plínio Salgado entre os pensadores paulistas que se revelaram expressões não somente intelectuais como também políticas de “bandeirismo ortodoxo”,[18] o considerando, ademais, um dos mais eminentes vultos de toda uma grande “geração de paulistas interessados nos seus valores tradicionais mais característicos” e que, se entregando “a estudos sérios e profundos de História ou Sociologia regional”, desenvolveu “esforço inteligente e útil de conservação, restauração e interpretação dos mesmos valores ou do seu aproveitamento como motivos original ou particularmente paulistas de arte, de literatura, de sátira social”, evitando que São Paulo, “por excesso de ‘modernismo’ desdenhoso do passado ou dos valores regionais, se tornasse, sob os arrojos da industrialização”, que o diferenciavam do restante do Brasil, um simples “arremedo de ‘progresso americano’ ou de ‘progresso norte-europeu’”.[19]
Ao voltar para o Brasil, em março daquele ano de 1923, Gilberto Freyre, que, a 22 de abril iniciaria uma série de artigos numerados publicados no Diário de Pernambuco até 15 de abril de 1925, se destacou como um dos principais defensores do tradicionalismo político em nosso País, revelando, nestes e noutros artigos dados à estampa naquele prestigioso jornal recifense e em outros periódicos, ideias profundamente influenciadas por aquelas de autores tradicionalistas (por ele neste período sempre evocados) como Joseph De Maistre, Louis De Bonald, Charles Maurras, Léon Daudet, Maurice Barrès, G. K. Chesterton (de cuja obra se ufanava de ser um dos pouquíssimos conhecedores no País), Eduardo Prado, Oliveira Lima, Jackson de Figueiredo, Padre Leonel Franca, e, sobretudo, António Sardinha (de quem foi, ao lado de Jackson de Figueiredo, o primeiro grande admirador em terras brasileiras) e outros intelectuais pertencentes ao Integralismo Lusitano, como Hipólito Raposo, Afonso Lopes Vieira, Manuel Múrias e o Conde de Monsaraz, ou dele simpatizantes, a exemplo de Fidelino de Figueiredo.
O jovem tradicionalista pernambucano de que ora falamos, como Maurras, a despeito de não ser então católico, possuía profundas “simpatias pela tradição Católica”,[20] sendo mesmo um “enamorado” da “Igreja de Roma”,[21] fazendo salientar, em artigo publicado no Diário de Pernambuco a 06 de setembro de 1925, que “nenhum ensino no Brasil pode ser honesto – seja público ou privado – que não reconheça a intensidade heróica da ação católica nos começos da nacionalidade brasileira”,[22] e afirmando, cheio de júbilo, que “o ritmo da influência Católica no Brasil se acelera” e que “a força Católica cada dia se acentua em sulcos mais fundos sobre a fisionomia da nação brasileira”, aparecendo, em nosso País

tipos de “leader” vigorosos e intensos, que lhe escasseavam melancolicamente, no clero como entre os leigos. Na mocidade dos Padre Leonel Franca e dos Jackson de Figueiredo esplendem flamas de uma claridade nova. Nunca o Catolicismo no Brasil se aproximou tanto como se vai nestes dias aproximando, do espírito de Dom Frei Vital. Do grande e heróico espírito de Frei Vital.[23]

            Apesar de admirador da Action Française, reputando haver “nas idéias de reação, ou antes de reconstrução de Ch. Maurras certo sentido universal”, Gilberto Freyre considerava ser preciso não esquecer que tais ideias “representam a sistematização de um grupo de idéias para aplicação a determinada situação mórbida: a vida francesa desorganizada pelo liberalismo e pela centralização”. Repetidamente, prossegue o então jovem articulista do Diário de Pernambuco, Maurras, no “grande livro que é a Enquête sur La Monarchie”, “frisa e sublinha este critério particularmente francês do esforço reconstrutor que sua inteligência dirige e seu fino sentimento de pátria anima”.[24] Assim, tendo em vista o nosso caráter e a nossa Tradição, concorda Freyre com seu amigo e admirador José Lins do Rego, que, em artigo publicado na revista Era Nova, da Paraíba, afirmara serem António Sardinha e Fidelino de Figueiredo “melhores mestres para o Brasil” do que os pensadores antiliberais franceses, sustentando, pois, que a aproximação dos jovens brasileiros já descrentes na liberal-democracia “deve ser antes com o movimento não sei se diga ‘reacionário’ português, ou hispânico, que com o francês”, de sorte que “ao nosso esforço de retificação mental e de reorganização moral e política” aquilo que “primeiramente convém é o critério hispânico, que nos integre no sentimento hispânico e na tradição sociologicamente católica”. Daí observar o então futuro autor de O brasileiro entre outros hispanos que, “caso tivesse autoridade, o que muito recomendaria ao adolescente brasileiro, tocado pelo desencanto do liberalismo, seria a leitura de Menendez y Pelaio [sic], de Gama e Castro, de Angel Ganivet, de J. Lúcio de Azevedo, de Fidelino, de Sardinha”.[25]
            O nosso jovem pensador tradicionalista, regionalista, patriótico e nacionalista, defensor da sociedade orgânica, da Monarquia Tradicional e das tradições católicas hispano-luso-brasileiras, e, como tal, adversário das ideias liberais e comunistas, que reputava contrárias à Tradição Nacional, assim como da própria República, ou, como dizia ele, do “regime de 89”, que, em seu sentir, ainda fedia a goma arábica,[26] sofreu, nesta fase de sua atividade intelectual, antes e acima de qualquer outra, a influência de António Sardinha. Neste admirava tanto o autor de “uma poesia cheia de nobreza intelectual” quanto o autor de “notaveis trabalhos de erudição e revisão histórica” e o doutrinador e homem de ação em torno do qual “estavam reunidas algumas das melhores forças jovens de Portugal, a intelligencia do velho paiz, desejosa de o reintegrar na sua tradição, na sua historia, na sua natureza de povo hispanico”, pertencendo, com efeito, à revista de cultura nacionalista e monárquica Nação Portuguesa, por ele dirigida e na qual o próprio Freyre chegara a colaborar, diversos “talentos moços, clarificados pela doutrina intelligentemente nacionalista do jovem mestre”.[27]  Esta influência se fez sentir sobre diversos aspectos do pensamento freyriano, mas particularmente sobre suas visões acerca da Tradição e da Hispanidade, termo que deriva de Hispânia, nome que os antigos cartógrafos davam a toda a península ora conhecida como Hispânica, ou Ibérica, e, evidentemente, foi muito mais intensa no período que vai de 1923 a 1926 e que é marcado por aquilo a que, empregando uma expressão sua, podemos denominar “fervor tradicionalista”,[28] fervor este que animou não apenas os artigos publicados no Diário de Pernambuco e em outros periódicos, a exemplo da Revista do Norte, também do Recife, da revista Nação Portuguesa, de Lisboa, e da Revista do Brasil, de São Paulo, dirigida por Monteiro Lobato e Paulo Prado, mas também, dentre outras coisas, a fundação, em 1924, do Centro Regionalista do Nordeste, onde se cogitou, no dizer de Lins do Rego, “dum nacionalismo de bom gosto como já fora aquele de Eduardo Prado”;[29] a publicação, em 1925, do Livro do Nordeste, obra comemorativa do centenário do Diário de Pernambuco que reuniu, além de diversos ensaios, dois dos quais de sua lavra, o célebre poema Evocação do Recife, de Manuel Bandeira, e, por fim, a realização, em 1926, na capital pernambucana, do Congresso Regionalista.
            A despeito, contudo, das mudanças que sofreu, nos anos seguintes, o pensamento do autor de Um brasileiro em terras portuguesas, a influência que sobre ele exerceu a obra de António Sardinha não se restringiu à mocidade, estando, com efeito, presente até o final de sua vida. Tanto que, vinte e oito anos após a morte do autor de A aliança peninsular,  no livro Aventura e rotina, cuja primeira edição data de 1953, ainda se refere elogiosamente a este “homem de combate”, em quem “aconteceu o transbordamento em homem de letras de uma personalidade marcada pelo fervor combativo” ou por uma “maneira pessoal de reagir contra convenções a seu ver desnacionalizantes ou desispanizantes do português”, assim como “a favor de tradições, no seu entender, essenciais à conservação do espírito nacional e do espírito hispânico, na gente portuguesa”.[30] Do mesmo modo, ainda como Sardinha, partindo da hispanidade do Mundo Lusíada, no qual se insere o Brasil, publicou o autor de Nordeste, em 08 de julho de 1961, na revista O Cruzeiro, do Rio de Janeiro, o artigo intitulado Brasil, nação hispânica no trópico, e, em 1975, lançou o livro O brasileiro entre os outros hispanos. Destarte, sem dúvida ainda concordava ele em idade provecta com sua afirmação da mocidade no sentido de que devemos dividir com a Espanha “o amor que nos prende a Portugal”, país que só deve “ser estudado como parte da Espanha”,[31] da Espanha-Madre de que nos fala Sardinha, frase que só causa estranheza àqueles que não se lembram de que Camões chamou os portugueses "Huma gente fortissima de Espanha",[32] da mesma forma que o país a que denominamos Espanha seria incompleto caso “do seu estudo se isolasse o de Portugal”.[33] Ainda julgaria, outrossim, que nós outros, “os povos da América hispânica”, devemos, animados pelo “patriotismo pan-hispânico” - fortalecido, em 1926, pelo voo transatlântico do Major Ramón Franco, irmão do então futuro Caudilho de Espanha, a bordo do hidroavião Plus Ultra - devemos nos aproximar de “nossas pátrias de origem”, isto é, de Espanha e Portugal, “para que num mais vivo contacto com o seu espírito, entre nós se fortaleça a personalidade hispânica”.[34] E, por derradeiro, até o final de sua existência foi o autor de Região e Tradição um ardoroso defensor da Tradição, sempre insistindo, como Sardinha, no caráter dinâmico desta,[35] que, segundo o poeta, pensador e homem de ação português, representa a “continuidade no desenvolvimento”, a “permanência na renovação”,[36] traduzindo, pois, filosófica e historicamente, “dinamismo e continuidade”.[37]
Considerando, como Sardinha, que a hispanidade representa “a unidade cultural e social do elevado destino que Portugal e Castela nobremente conseguiram no Universo, dilatando com a Fé e o Império o mesmo ideal superior da civilização”,[38] Gilberto Freyre, para quem “o hispanismo não é para nós, nova gente da América Hispânica, nenhum melancólico e exagerado culto do passado”, mas “uma força de vida a nos oferecer o mais belo e o mais congenial dos ritmos para a disciplina da nossa jovem e dispersa energia”,[39] palavras estas que podiam bem definir também a Tradição, foi o primeiro grande cruzado, no Brasil, do hispanismo, assim como em Portugal o foram Fidelino de Figueiredo e António Sardinha. Isto posto, cumpre salientar que o próprio termo “hispanidade”, aplicado ao conjunto das nações hispânicas, grupo este, que, na opinião dos mais autorizados hispanistas de Portugal e de Espanha, inclui também o Mundo Lusíada, havia então surgido apenas recentemente. Entre nós, da América Luso-Brasileira, parte da América Hispânica tanto quanto a América de formação castelhana, podemos indicar, como um dos precursores de tal movimento, Silveira Martins, que, no Parlamento do Império, afirmou, em 1875, pertencer o brasileiro à “raça espanhola”,[40] decerto havendo tomado o termo “raça” em sentido amplo e sobretudo espiritual.
 Gilberto Freyre, para quem “um povo só se mantém pela intolerância no que diz respeito à sua tradição e ao seu sentimento”, em tal “esfera de valores espirituais a tolerância” não significando senão “desorientação, suicídio nacional, renúncia da personalidade”,[41] foi, ademais, um dos primeiros cruzados do tradicionalismo político no Brasil, havendo sido comparado por José Lins do Rego, em artigo publicado em Era Nova no mês de setembro de 1924, a Jackson de Figueiredo, sendo na companhia de ambos  os autores, exemplo de “bom-senso”, segundo o então futuro autor de Menino de engenho, que a nova geração brasileira daquele tempo estava de “ânimo feito” para “refazer o Brasil”.[42] Exercendo profunda influência junto aos meios intelectuais recifenses em meados dos anos 1920, foi ele, de certa forma, um precursor do grupo tradicionalista que, na década seguinte, teve considerável força na capital pernambucana, ali editando, entre 1931 e 1940, o jornal Fronteiras, que, sob o lema “ordem; autoridade; nação”, foi dirigido por Manuel Lubambo e Vicente do Rego Monteiro, este último – célebre pintor modernista, autor do Manifesto dos artistas do Brazil pró restauração monarchica, publicado naquele jornal em 1935, e adepto do Integralismo Brasileiro a partir de meados daquele decênio – amigo de Freyre, a quem conhecera na Europa, em 1922, e que sobre ele escrevera um ensaio aparecido na Revista do Brasil em 1923. Já havendo, porém, na década de 1930, o controvertido autor de Casa-grande e senzala, abandonado a defesa das tradições católicas pátrias e do tradicionalismo político e sofrido a influência de ideias liberais e também socialistas, o jornal Fronteiras o atacou duramente em diversas ocasiões, a ele se referindo, por exemplo, na edição de novembro de 1936, como um “ex-agitador e agora burguês”.[43]



[1] REGO, José Lins do. Prefácio. In FREYRE, Gilberto. Região e Tradição. 2ª ed. Rio de Janeiro: Gráfica Record Editora, 1968, p. 33.
[2] NABUCO, Joaquim. Balmaceda. São Paulo: Companhia Editora Nacional. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira S.A., 1937, p. 15. O autor de O abolicionismo e de Um estadista do Império define tal política, na página citada, como a “pura arte de construção no vácuo”, tendo, como base, “teses, e não fatos”, como material, “ideias, e não homens”, como situação, “o mundo, e não o país” e, como habitantes, “as gerações futuras, e não as atuais”.
[3] FREYRE, Gilberto. Região e Tradição. 2ª ed. Rio de Janeiro: Gráfica Record Editora, 1968, p. 75.
[4] Idem, p. 76.
[5] Idem, loc. cit.
[6] VIANNA, Oliveira. O idealismo da Constituição. 2ª ed. Aumentada. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1939, pp. 12-13.
[7] FREYRE, Gilberto. Região e Tradição. 2ª ed. Rio de Janeiro: Gráfica Record Editora, 1968, p. 77.
[8] MESQUITA, A. N. História dos baptistas em Pernambuco. Recife: Typographia do C. A.. B, 1930, p. 186.
[9] FREYRE, Gilberto. Meu pai. Disponível em: http://bvgf.fgf.org.br/frances/obra/opusculos/meu_pai.htm. Acesso em 04 de maio de 2013.
[10] FREYRE, Gilberto. Introdução do autor. In Idem. Tempo de aprendiz: artigos publicados em jornais na adolescência e primeira mocidade do autor: 1918-1926. Nota do organizador José Antonio Gonsalves de Mello; prefácio de Nilo Pereira; introdução do autor. Vol. I. São Paulo: IBRASA; Brasília: INL, 1979, p. 35.
[11] Idem. Tempo de aprendiz: artigos publicados em jornais na adolescência e primeira mocidade do autor: 1918-1926. Nota do organizador José Antonio Gonsalves de Mello; prefácio de Nilo Pereira; introdução do autor. Vol. I. São Paulo: IBRASA; Brasília: INL, 1979, p. 277.
[12] Idem, p. 278.
[13] PESSOA, Fernando. Da República (1910-1935). Recolha de textos: Maria Isabel Rocheta e Maria Paula Morão. Introdução e organização de Joel Serrão. Lisboa: Ática, 1978, p. 354.
[14] PIO XI. Encíclica Caritate Christi Compulsi. Disponível (em italiano) em:http://www.vatican.va/holy_father/pius_xi/encyclicals/documents/hf_p-xi_enc_19320503_caritate-christi-compulsi_it.html. Acesso em 04 de maio de 2013.
[15] RAPOSO, Hipólito. A notável oração do Dr. Hipólito Raposo. In Uma reportagem histórica (pubicada originalmente no jornal A Voz, de Lisboa, a 23 de junho de 1946). In VV.AA. Plínio Salgado: “in memoriam”. Vol. II. São Paulo: Voz do Oeste/Casa de Plínio Salgado, 1986, p. 189.
[16] BARROSO, Gustavo. Portugal, semente de impérios. Rio de Janeiro: Editora Getúlio Costa, s/d (1943), p. 109.
[17] Freyre, Gilberto. Uma cultura ameaçada: a luso-brasileira, 2ª ed., Casa do Estudante do Brasil, Rio de Janeiro, 1942, p. 88.
[18] FREYRE, Gilberto. Problemas brasileiros de Antropologia. 3ª ed. Prefácio de Gonçalves Fernandes. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio Editora, 1962, p. 42.
[19] Idem, p. 72.
[20] Idem. Introdução do autor. In Idem. Tempo de aprendiz: artigos publicados em jornais na adolescência e primeira mocidade do autor: 1918-1926. Nota do organizador José Antonio Gonsalves de Mello; prefácio de Nilo Pereira; introdução do autor. Vol. I. São Paulo: IBRASA; Brasília: INL, 1979, p. 35.
[21] Idem. Região e Tradição. 2ª ed. Rio de Janeiro: Gráfica Record Editora, 1968, p. 49.
[22] Idem. Desvio de força (artigo publicado no Diário de Pernambuco a 06 de setembro de 1925). In Idem. Tempo de aprendiz: artigos publicados em jornais na adolescência e primeira mocidade do autor: 1918-1926. Nota do organizador José Antonio Gonsalves de Mello; prefácio de Nilo Pereira; introdução do autor. Vol. II. São Paulo: IBRASA; Brasília: INL, 1979, p. 203.
[23] Idem, p. 202.
[24] Idem. Sugestões a um livreiro (artigo publicado no Diário de Pernambuco a 18 de junho de 1925). In Idem. Tempo de aprendiz: artigos publicados em jornais na adolescência e primeira mocidade do autor: 1918-1926. Nota do organizador José Antonio Gonsalves de Mello; prefácio de Nilo Pereira; introdução do autor. Vol. II. São Paulo: IBRASA; Brasília: INL, 1979, p.175.
[25] Idem p. 176.
[26] Idem. 34 (artigo publicado no Diário de Pernambuco a 09 de dezembro de 1923). In Idem. Tempo de aprendiz: artigos publicados em jornais na adolescência e primeira mocidade do autor: 1918-1926. Nota do organizador José Antonio Gonsalves de Mello; prefácio de Nilo Pereira; introdução do autor. Vol. I. São Paulo: IBRASA; Brasília: INL, 1979, p.343.
[27] Idem. Antonio Sardinha (artigo originalmente publicado na Revista do Norte, ano I, nº 1, Recife, 1925, pp. 5-6). Disponível em: http://www.angelfire.com/pq/unica/il_gf_antonio_sardinha_por_gilberto.htm. Acesso em 05 de maio de 2013.
[28] Idem. Rua Larga do Rosário (artigo originalmente publicado no Diário de Pernambuco a 02 de novembro de 1926. In Idem. Tempo de aprendiz: artigos publicados em jornais na adolescência e primeira mocidade do autor: 1918-1926. Nota do organizador José Antonio Gonsalves de Mello; prefácio de Nilo Pereira; introdução do autor. Vol. II. São Paulo: IBRASA; Brasília: INL, 1979, p. 246.
[29] REGO, José Lins do. Era Nova, ano V, nº 80, Paraíba, junho de 1925.
[30] FREYRE, Gilberto. Aventura e rotina: sugestões de uma viagem a procura das constantes portuguesas de caráter e ação. 1ª edição. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio Editora, 1953, p. 114.
[31] Idem. Tierra! (artigo originalmente publicado no Diário de Pernambuco a 29 de janeiro de 1926). In Idem. Tempo de aprendiz: artigos publicados em jornais na adolescência e primeira mocidade do autor: 1918-1926. Nota do organizador José Antonio Gonsalves de Mello; prefácio de Nilo Pereira; introdução do autor. Vol. II. São Paulo: IBRASA; Brasília: INL, 1979, p. 258.
[32] CAMÕES, Luís Vaz de. Os Lusíadas, Canto I, estrofe XXXI.
[33] FREYRE, Gilberto. Tierra! (artigo originalmente publicado no Diário de Pernambuco a 29 de janeiro de 1926). In Idem. Tempo de aprendiz: artigos publicados em jornais na adolescência e primeira mocidade do autor: 1918-1926. Nota do organizador José Antonio Gonsalves de Mello; prefácio de Nilo Pereira; introdução do autor. Vol. II. São Paulo: IBRASA; Brasília: INL, 1979, p. 258.
[34] Idem. Do íntimo sentido de um grande vôo (artigo originalmente publicado no Diário de Pernambuco a 03 de fevereiro de 1926). In Idem. Tempo de aprendiz: artigos publicados em jornais na adolescência e primeira mocidade do autor: 1918-1926. Nota do organizador José Antonio Gonsalves de Mello; prefácio de Nilo Pereira; introdução do autor. Vol. II. São Paulo: IBRASA; Brasília: INL, 1979, p. 262.
[35] Idem. Prefácio do autor à 2ª edição. In Idem. . Região e Tradição. 2ª ed. Rio de Janeiro: Gráfica Record Editora, 1968, p. 43.
[36] SARDINHA, António. Ao princípio era o Verbo. 2ª ed. Lisboa: Editorial Restauração, 1959, p. 10.
[37] Idem. Ao ritmo da ampulheta. 1ª ed. Lisboa: Lumen, 1925, p. XXV. Grifos em itálico no original.
[38] SARDINHA, António. À lareira de Castela, cit., pp. 12-13.
[39] FREYRE, Gilberto. Do íntimo sentido de um grande vôo (artigo originalmente publicado no Diário de Pernambuco a 03 de fevereiro de 1926). In Idem. Tempo de aprendiz: artigos publicados em jornais na adolescência e primeira mocidade do autor: 1918-1926. Nota do organizador José Antonio Gonsalves de Mello; prefácio de Nilo Pereira; introdução do autor. Vol. II. São Paulo: IBRASA; Brasília: INL, 1979, p. 263.
[40] MARTINS, Gaspar Silveira. Aparte a José de Alencar, na sessão da Câmara Geral do Império de 02 de junho de 1875. In ALENCAR, José de. Discursos parlamentares de José de Alencar. Obra comemorativa do centenário de morte de José de Alencar. Apresentação de Marco Maciel. Introdução de Rachel de Queiroz. Brasília: Câmara dos Deputados, 1977, p. 517.
[41] FREYRE, Gilberto. Artigo numerado 79. In Idem. Tempo de aprendiz: artigos publicados em jornais na adolescência e primeira mocidade do autor: 1918-1926. Nota do organizador José Antonio Gonsalves de Mello; prefácio de Nilo Pereira; introdução do autor. Vol. II. São Paulo: IBRASA; Brasília: INL, 1979, p. 83.
[42] REGO, José Lins do. Carta de uma geração aos Srs. Gilberto Freyre e Jackson de Figueiredo. In Era Nova, ano IV, nº 69, Paraíba, setembro de 1924.
[43] FRONTEIRAS. O Congresso Afro-Brasileiro: uma Organização Puramente Científica. In Fronteiras, anno V, n. 19, Recife, novembro de 1936, p. 14.




[i] Comunicação apresentada a 6 de maio de 2013, na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (USP), durante a VIII Semana de Filologia na USP.
                                                                                                                                                                           


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